Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

O descontentamento como lógica

O descontentamento não é direcionado apenas ao consumo de coisas, mas à percepção que cada pessoa tem de si

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O descontentamento atravessa a condição humana. Se fosse o contrário, não teríamos decidido pelo bipedalismo, pela visão frontal e pelo desenvolvimento de um certo tipo de consciência – uma espécie de software que vem sem manual de instrução. Por condições variadas – desde a inadequação à natureza, ando pelas escolhas e pela aleatoriedade da adaptação natural, a insatisfação diante do sofrimento ou da oportunidade de sossego nos garantiu a constituição como seres humanos.

Não é possível pensar um sujeito plenamente contente, unificado e realizado por completo. A falta é aquilo que nos constitui. Por ela buscamos, com ela lutamos, e dela vivemos. Sossego mesmo, satisfação completa, só quando estivermos comendo capim pela raiz – se é que me entende... Enquanto houver vida, haverá busca; e enquanto houver busca, haverá uma trajetória movida por aquilo que nos falta.

A grande questão é: quando foi que o descontentamento deixou de ser uma coisinha íntima e filosófica – daquelas que você resolve numa caminhada ouvindo Caetano – para virar um modelo de negócio? A falta, antes poética, virou defeito de fabricação. Agora ela precisa ser corrigida, expurgada, tratada como se fosse uma verruga na alma. Surgiu então o descontentamento fake, o kit de infelicidade , capaz de nos afastar da vida original, daquela que se vive entre tropeços, vinho com os amigos e domingos de tédio.

Marx entendeu isso muito bem quando propôs a ideia de “fetiche da mercadoria”. Para ele, os objetos têm um valor de uso — tipo uma cadeira serve pra sentar, um pão serve pra comer e um celular serve pra ignorar pessoas ao seu redor. Mas existe outro valor, o de troca, que transforma um tênis comum em um Air Jordan edição limitada autografado pelo espírito do Michael Jordan. O fetiche é esse encantamento brega, um feitiço, que faz a gente achar que a felicidade está na sacola da loja, quando na verdade está no fundo da garrafa de vinho (ou nem lá).

Enfeitiçados, abrimos mão da consciência — inclusive da consciência da nossa própria enfeitiçabilidade. Nessa lógica, amos a ser objetos das coisas que adquirimos e, nesse momento, nos transformamos também em produtos: a matéria-prima mais barata do capitalismo. Essa inversão não é apenas conceitual, é fundamental para nos orientar diante do mundo. A dignidade humana a a ser coisificada por essas entidades transcendentes – e supostamente divinas! – capazes de nos transformar em seres superiores, diferentes daquilo que somos e pensamos.

A lógica produtiva do capitalismo entendeu isso muito bem. Aí está uma grande diferença: os capitalistas tiveram tempo de ler Marx e entender o sistema. Os trabalhadores não puderam se dedicar a esse luxo. Enquanto alguns viviam como se não precisassem do trabalho, a maior parte da sociedade trabalha porque precisa viver.

É por esse motivo que o capitalismo tardio não pode ser visto apenas como um modo de produção, mas como uma forma de viver, uma organização social, uma espécie de religião sem santos, mas com líderes empresariais, Ceo’s e coaches. Mais do que produzir objetos, ele foi responsável por produzir uma Sociedade de Mercado – espaço no qual tudo se troca, se vende, se compra, funcionando pela lógica da objetificação. Não há vida, apenas mercadorias. Não há corpos, mas organismos a serem colonizados – por terapias breves via aplicativo, medicação e reabilitações normatizadoras para garantir o bom funcionamento, não do sujeito, é lógico, mas do sistema produtivo.

A sociedade de mercado atingiu um novo patamar – como gostamos de dizer no futebol. Agora, o descontentamento não é direcionado apenas ao consumo de coisas, mas à percepção que cada pessoa tem de si. Ou seja, não é mais sobre o que você tem, mas quem você é. Viver descontente se torna uma estrutura que sustenta a lógica de sujeitos desterrados de sua própria subjetividade, expropriados de seus próprios desejos e exilados, com medicamentos e alta tecnologia, da condição humana. Uma sociedade de zumbis que vivem como se já estivessem mortos. Não se trata de um fetiche consigo – o que seria, inclusive, uma coisa boa, mas um fetiche de si, um ideal de eu completamente irrealizável.

É comum a ideia de uma “melhor versão de si mesmo” ser encarada como uma transcendência, mas trata-se apenas de mais uma falácia dominadora, feita para enquadrar qualquer pessoa na necessidade constante de se adequar à lógica na qual ela não se sinta divergente. E, por muitas vezes, a divergência é apenas uma revolta que marca a forma de ser no mundo, pedindo agem e respeito. Quem atualiza é aplicativo. É preciso guardar a resiliência para a esponja de lavar louça, que tem a obrigação de voltar ao seu estágio inicial para ser bem utilizada novamente.

O descontentamento constante em relação a si mesmo tornou-se a nova estratégia de mercado: vender novos produtos perguntando “qual é a sua dor?”. Depois disso, te vendem um curso online, uma cápsula, um plano de com nome em inglês e um avatar 3D que sorri por você. A insatisfação virou commodity.

A insatisfação consigo — parte constituinte da vida, é lógico — agora se tornou condição inequívoca do próprio sistema, que constrói imagens irreais de um “eu perfeito” que todos devem alcançar.

Se a ideia de “eu perfeito” é ilusória, a busca por ele se transforma em um suplício constante, no qual o único desejo é se adequar – e não viver – a uma realidade que exige seres prontos para serem consumidos. Canibais de nós mesmos, nos devoramos à revelia de corporações e algoritmos, que se constituem na grande escravidão da vida moderna.

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Mas, como diz a música que, junto à poesia e à filosofia, talvez ainda seja um respiro diante de um mundo morto, podemos cantar: Se eles querem meu sangue, verão o meu sangue só no fim. Se eles querem meu corpo, só se eu estiver morto, só assim.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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